MANIFESTO DA REVOLTA
(ou estatuto do poema)



&. Enquanto a distância ainda for imensurável
- enquanto o pão ainda for indivisível;
&. Enquanto a injustiça ainda for intolerável
- enquanto o futuro ainda for imprevisível;
&. Enquanto a fome ainda for insaciável
- enquanto o desejo ainda for irresistível;
&. Enquanto a verdade ainda for inacreditável
- enquanto o passado ainda for inesquecível;
&. Enquanto o receio ainda for inevitável
- enquanto a certeza ainda for inflexível;
&. Enquanto o pecado ainda for imperdoável
- enquanto o mal ainda for irreversível;
&. Enquanto a sentença ainda for irrevogável
- enquanto o gosto ainda for indiscutível;
&. Enquanto a notícia ainda for impublicável
- enquanto o silêncio ainda for inexprimível;
&. Enquanto a dor ainda for insuportável
- enquanto a mulher ainda for inacessível;
&. Enquanto a ofensa ainda for irretratável
- enquanto a pessoa ainda for insubstituível;
&. Enquanto a ausência ainda for incalculável;
- enquanto o gênio ainda for incompatível;
&. Enquanto o fato ainda for irrefutável
- enquanto o resultado ainda for inconcebível;
&. Enquanto o valor ainda for inestimável
- enquanto o eterno ainda for incognoscível;
&. Enquanto o tempo ainda for irrecuperável
- enquanto a prática ainda for inexeqüível;
&. Enquanto a proposta ainda for irrecusável
- enquanto o rosto ainda for irreconhecível;
&. Enquanto a calma ainda for imperturbável
- enquanto a barreira ainda for intransponível;
&. Enquanto o enigma ainda for indecifrável
- enquanto o gesto ainda for incorrigível;
&. Enquanto o mistério ainda for imperscrutável
- enquanto o átomo ainda for imperceptível;
&. Enquanto o prazo ainda for improrrogável
- enquanto o som ainda for incompreensível;
&. Enquanto a presença ainda for indispensável
- enquanto a vida ainda for imperecível;
&. Enquanto o buraco ainda for impenetrável
- enquanto a liberdade ainda for impossível;
&. Enquanto a teoria ainda for impraticável
- enquanto o conceito ainda for indefinível;
&. Enquanto o nome ainda for inominável
- enquanto o caráter ainda for incorruptível;
&. Enquanto o ódio ainda for incontrolável
- enquanto a vontade ainda for irreprimível;
&. Enquanto a situação ainda for insustentável
- enquanto a beleza ainda for indescritível;
&. Enquanto o desespero ainda for indisfarçável
- enquanto a esperança ainda for indestrutível;
&. Enquanto a dúvida ainda for incontestável
- enquanto a desculpa ainda for inadmissível;
&. Enquanto a fila ainda for interminável
- enquanto a paz ainda for inatingível;
&. Enquanto o poema ainda for inexplicável;

o poeta resistirá ao ódio, à solidão & à morte

até que toda distância seja ultrapassada
até que toda alegria seja dividida
até que toda injustiça seja derrotada
até que toda idéia seja refletida
até que toda fome seja saciada
até que todo virtude seja corrompida
até que toda verdade seja revelada
até que toda lembrança seja esquecida
até que toda culpa seja confessada
até que toda dúvida seja esclarecida
até que toda dívida seja perdoada
até que toda ausência seja pressentida
até que toda dor seja aliviada
até que toda barreira seja rompida
até que toda ofensa seja retratada
até que toda mulher seja seduzida
até que toda notícia seja publicada
até que toda promessa seja cumprida
até que toda liberdade seja alcançada
até que toda esperança seja restituída
até que toda beleza seja deflorada
até que toda cena seja reconstituída
até que toda proposta seja recusada
até que toda teoria seja desmentida
até que toda certeza seja confirmada
até que toda cidade seja reconstruída
até que toda porta seja fechada
até que toda carícia seja repartida
até que toda indiferença seja desprezada
até que toda graça seja recebida
até que toda arte seja apreciada
até que toda tristeza seja contida
até que toda criatura seja amada
até que toda semana seja repetida
até que toda ponte seja inaugurada
até que toda pessoa seja preferida
até que toda aflição seja consolada
até que toda angústia seja compreendida
até que toda miséria seja erradicada
até que toda palavra seja proferida
até que toda ferida seja cicatrizada
até que toda fraqueza seja fortalecida
até que toda doença seja medicada
até que toda infância seja assistida
até que toda velhice seja amparada
até que toda paz seja atingida
até que toda consciência seja iluminada
e todos os homens estejam perdidos
e todas as musas, amaldiçoadas
e todos os poemas esquecidos
e toda a poesia, mutilada,
e todos os poetas tenham morrido
e todas as almas, condenadas:

- restará um verso, soco de Orfeu contra o escuro,
palavra a arder no caos que se inflama,
que se erguerá dos prédios em ruínas
ou da cidade em chamas,
e se juntará ao silêncio de todas as bocas,
e se somará ao lamento de todas as vozes,
e se fundirá ao tédio e ao abandono,
e tocará a sombra insonora da vida
por onde, imperceptível, a morte nasce,
e de novo emprenhará os homens,
e novamente fecundará
o ventre das mulheres
- cujos corpos tão belos apodrecem -,
e romperá o asfalto,
e paralisará o tempo e o espaço,
e distribuirá o medo e a incerteza
ao coração de todas as crianças,
até que, livre de toda forma e metafísica,
o poema contemple, assombrado,
a face latejante do eterno e do imutável,
e, entre os destroços da civilização
e da tecnologia,
o poema
renasça.

Ricardo Leão (Simetria do Parto, Editorial Cone Sul, 2000)

.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog