AS LÂMINAS VERBAIS DE VIRIATO GASPAR



Tratarei agora de uma das vozes mais poderosas e distintas da poesia contemporânea maranhense, que me atraiu atenção e fascínio desde o seu primeiro livro. Refiro-me ao poeta Viriato Gaspar, dono de uma dicção singular que, desde 1984, quando publicou Manhã portátil, seu primeiro livro de poemas, foi auspiciosamente recebido pelo melhor da crítica à época. Neste livro, que despertou o meu interesse ainda quando adolescente, na distante São Luís de 1985, encontrei um poeta senhor de uma técnica invejável, de uma espontaneidade vocabular e metafórica muito peculiar, cultivador de um engenho poético definitivo na feição de uma tradição maranhense do verso que remonta, como um de seus mais legítimos herdeiros, na linha do tempo, a lírica poderosa de Teófilo Dias e Maranhão Sobrinho, e que em tempos mais recentes familiariza-se com a poesia dos modernos maranhenses Nauro Machado, Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi e o paraibano de nascimento, mas naturalizado maranhense, José Chagas. De todos esses, Viriato Gaspar herda o artesanato verbal, o esforço consciente de criar poesia da mais moderna envergadura com os instrumentos do clássico e do moderno ao mesmo tempo, desprezando os vanguardismos vazios e retóricos que resvalam em ressentimento contra o verso tradicional, com metro e rima, recursos expressivos através dos quais o poeta, desde Manhã portátil, exprime-me como poucos.



Cabe, talvez, aqui uma pequena anedota. Certa vez, em visita ao extinto SIOGE (Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado do Maranhão), um verdadeiro centro editorial da cultura maranhense de então, através não apenas do Plano Editorial Gonçalves Dias, encontrei, entre outras figuras do cenário literário da época, Nauro Machado. Sobre uma mesa, estavam exibidos os últimos títulos do Plano Editorial, entre os quais, o Manhã portátil, de Viriato. Eu, ainda na aurora de meus experimentos verbais, vi o Nauro tomar o exemplar de Manhã portátil nas mãos, folheá-lo com paciência e atenção, e, após alguns longos minutos de silêncio, fez um muxoxo com os lábios, e declarou em voz alta para mim, ao seu lado: “É, isso sim é que é poesia.”
Foi o que bastou para mim, ávido leitor de Nauro, para adquirir um exemplar de Manhã portátil, e lê-lo por dias, meses e anos a fio, sem parar. Com efeito, havia encontrado naquela reunião de poemas, a atestar a acuidade irretocável do juízo literário e crítico de Nauro, um poeta de primeiro time, daqueles que nos convidam, desde o primeiro poema, a uma jornada de inesgotáveis prazeres estéticos com versos que são, a meu ver, uma das mais belas e significativas contribuições do século XX ao acervo literário do Maranhão, um estado que não cessa, em sua usina inexaurível de palavras e de talentos artísticos, de gestar poetas de uma grandeza inquestionável e arrebatadora. Pois arrebatadores são os poemas de Manhã portátil, desde os primeiros versos do alentado Índice:

o homem é a matéria do meu canto,
qualquer que seja a cor do que ele sente.
e não importa o motivo do seu pranto,
é um homem, meu irmão, e estou doente

de sua dor, e é meu o seu espanto
do mundo e desta hora incongruentes.
na trincheira do verbo me levanto
contra o que contra o homem se intente.

o homem é o objeto e o objetivo
de quanto sei cantar, e o canto é tudo
que pode me explicar porque estou vivo.

às vezes sou ateu, noutras sou crente,
em outras sou rebelde, em algumas mudo:
- sou homem, e canto o homem no presente.

Um poema muito sensível e humano, de um livro muito sensível e humano, muito apropriado aos tempos de ferro dos últimos anos no mundo e no Brasil. O talento poético de Viriato, no entanto, tem uma longa história, que não começa de Manhã portátil em diante. Pertencente a uma geração profícua e extremamente talentosa, talvez a mais fecunda e robusta após a geração de Nauro Machado, Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi e José Chagas, a poesia de Viriato foi fecundada no leito do vigoroso caudal da tradição literária maranhense. Seu nome alinha-se aos de outros poetas surgidos no período, como Chagas Val, Valdelino Cécio, Luís Augusto Cassas, Raimundo Fontenele, Francisco Tribuzi, Rossini Corrêa, e, na música, César Teixeira, Sérgio Habibe, Josias Sobrinho, Giordano Mochel Filho, entre outros talentos que, juntos, formaram a atmosfera cultural da ilha de São Luís durante as décadas de 1970 a 1980, na qual poetas mais jovens, como eu, fomos nutridos por lufadas de uma poderosa cultura verbal e musical, sem contar com as obras dos grandes nomes já citados: Gullar, Tribuzi, Chagas, Nauro. Neste sentido, em termos históricos, Viriato inscreve-se num cenário muito fecundo, do qual irá provir o grupo de poetas mais representativo do período, que, desde o Liceu Maranhense, quando ainda secundaristas, começaram a agitar o cenário local criando grupos e, em decorrência disso, mais tarde, o movimento Antroponáutica, fundado ainda nas dependências do Liceu, num dia de domingo. No ano de 1972, publicam juntos uma antologia batizada com o nome do movimento, e depois a antologia Hora de guarnicê, publicada em 1975 sob o selo editorial da José Olympio, adicionados os nomes de João Alexandre Júnior e Rossini Corrêa, entre outros. Com estes dois feitos, surge um dos mais fecundos e vigorosos grupos literários da poesia contemporânea maranhense, que, desde então, vem publicando sucessivamente.





No entanto, o projeto estético de Viriato Gaspar distingue-se, sob muitos aspectos, dos demais poetas do grupo. Afeiçoado aos instrumentos tradicionais do verso, como o metro, ritmo e a rima, Viriato tem sido um dos raros poetas maranhenses que, com a convicção de que a iconoclastia não é um caminho necessariamente inexaurível e criativo à toda prova, resolve adotar uma dicção que retorna, sobretudo na esteira verbal de Nauro e Chagas, ao cultivo dos recursos expressivos que sempre caracterizaram a construção arquitetônica da arte poética da palavra, sem desprezar, no entanto, os recursos expressivos desenvolvidos ao longo da modernidade. Neste sentido, Viriato construiu uma trajetória poética e literária que se afasta do intenso e, por vezes, vazio prosaísmo que tem caracterizado o discurso poético dos poetas dos últimos 40 anos, particularmente à entrada do século XXI, em que se tornou praticamente um tabu velado ou explícito o ato de escrever sonetos, utilizar o rimário opulento da língua portuguesa, e adotar a métrica, além de outros recursos, como instrumentos do artesanato verbal da poesia.
Com efeito, Viriato recusou-se à crença algo dogmática de que a beleza irredutível da palavra só pode ser alcançada se o poeta desprezar por completo e para sempre o soneto, entre outras formas fixas, o metro e a rima. Desde Manhã portátil (1984), passando por Onipresença (1986), A lâmina do grito (1988) e Sáfara safra (1996), Viriato Gaspar tem se mantido fiel a uma dicção bem peculiar, na qual os instrumentos do moderno aliam-se às forças da tradição, no cultivo de versos em que a força metafórica explode através de coerções que ampliam o poder expressivo da palavra, condicionado à arquitetônica da rima e do metro, como em Prefácio, dedicado a outro mestre do verso tradicional, José Chagas:


Para que o mundo não pesasse tanto
nem me doesse tão profundamente,
era preciso que não houvesse pranto
ou que meu coração fosse dormente.

Para que a vida me fosse tranquila
(não esse pantanal que a vida medra
e onde a própria existência se aniquila),
era preciso que eu fosse de pedra.

Mas como eu não sou cego, surdo ou mudo,
e a vida e o mundo, a hora e o homem, tudo
me pesa com sua crosta de agonia,

ergo meu canto como uma trincheira,
sabendo-o parco, mas sentindo inteira
a dor de cada um, que a minha expia.
   
Ou mesmo na força vocabular do Soneto 19, de A lâmina do grito, no qual Viriato demonstra a perfeita consciência da lição assimilada em As flores do mal, de Baudelaire, a qual consiste em demonstrar que é possível romper com a sintaxe, a dicção metafórica e linguística do clássico com a introdução de elementos vocábulos e rítmicos que são totalmente modernos e, por isso, desautomatizam a percepção viciado do verso tradicional, demonstrando a força ainda fecunda da rima e do metro:

O corpo. Sim, o corpo ─ uma arapuca
de músculos e nervos enfeixados,
pedaço do universo que se ocupa
como se, em nós, nós fôssemos fechados.

O corpo. Oh sim, o corpo, este arsenal
de pomos de poeira acesa em chama.
Objeto de uso estritamente pessoal,
que a gente empresta às vezes, quando ama.

O corpo, sim. A atômica mistura
de líquidos e hormônios, carne e ossos,
neurônios em fusão com h2O.

Brochura estrutural dos voos nossos.
Capaz de, no milagre da ternura,
leirar em luz o pez do próprio pó.

A tranquilidade expressiva de Viriato no verso metrificado e rimado demonstra, para além da prova inquestionável de que bebeu nas fontes mais vigorosas da tradição ocidental da poesia, uma outra tese: a de que a espontaneidade no verso depende diretamente do uso consciente de uma gama vigorosa de recursos e instrumentos coercitivos da palavra, que permitem, dentro de uma liberdade limitada pelas regras do artesanato verbal, justamente o oposto de uma suposta prisão e asfixia do poético. Ou seja, assim como demonstrou o teórico formalista Iuri Tinianov, em célebre ensaio intitulado O ritmo como fator construtivo do verso (1924), a respeito justamente da poesia em verso livre, ou como afirma o grupo OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle ou Ateliê de Literatura Potencial), um poeta que não conhece as regras e coerções que utiliza na confecção do próprio verso é mais escravo do que aquele que domina os instrumentos, regras e coerções que utiliza, de modo consciente, em seu artesanato verbal. A obra poética de Viriato Gaspar é a demonstração dessas assertivas, pois Tinianov, em seu ensaio, demonstrou que o verso livre não está livre das pressões dos acentos ritmos da sílaba poética se o poeta, de fato, deseja obter efeitos e resultados expressivos por meio do verso livre. A ausência de uma métrica regular no verso não é ausência desculpável de ritmo, elemento imprescindível para que o texto poético resulte em um conjunto articulado de aliterações, assonâncias, oximoros, metáforas, entre outros recursos expressivos nos mais diversos níveis e estratos da língua (gráfico, fonológico, morfológico, sintático, lexical, semântico e interpretativo), a fim de que se obtenha o esperado resultado artístico: o fenômeno poético. Ou, nos termos formalistas, a literariedade. Ou, em vocabulário mais rasteiro, a beleza verbal poética.





Em outros termos, Viriato Gaspar demonstra absoluta consciência, em seu artesanato poético, de que a poesia possui, assim como a música e outras linguagens artísticas, o seu repertório próprio de regras, coerções, instrumentos expressivos, e que desprezá-los, em nome de um suposto vanguardismo ou de uma furiosa iconoclastia, não é garantia de resultados nobres e apreciáveis no que diz respeito à arte do verso. Assim, mesmo praticando o verso livre eventualmente, Viriato não se afasta da lição de Ezra Pound (melopeia, fanopeia e logopeia), a qual diz que a poesia só é completa se garantimos altivez e beleza expressiva em nível de ritmo, forma e conteúdo, tanto em verso rimado e metrificado, como em verso livre. A preferência de Viriato pelo verso rimado e metrificado é apenas a consciência de que sua expressão poética manifesta-se melhor, e com mais alvedrio, utilizando os instrumentos que muitos poetas decretaram como uma prisão, e que, no entanto, nas mãos de poetas como Viriato, operam justamente o fenômeno contrário: a liberdade.
Assim, vemos a liberdade poética dos recursos expressivos de Viriato de muitos poemas metrificados ou livres, de sabor de protesto e denúncia social, como em Feira de amostras:

na fila do INPS não tem homem
só aleijados
sifilíticos
cegos
opilados
paralíticos

na fila do INPS não tem gente
só andrajos
úlceras
pústulas
tumores
fome

na fila do INPS não existem pessoas
só o refugo das máquinas
as sobras das indústrias
o lixo das fábricas
as fezes da vida
a merda do desenvolvimento

na fila do INPS não há homens
há gado
coisas
dejetos
peças quebradas
da engrenagem do progresso

a fila do INPS é o outro lado da moeda
a outra face das estatísticas
os bastidores do país
o subúrbio da nação
o lado escuro dos gabinetes
a lama por debaixo dos tapetes

a fila do INPS é o retrato
exato
perfeito
irretocável
do brasil.

Ou, ainda, nos versos de metro curto, ao estilo de pequenas trovas, herdados da tradição nordestina e portuguesa, que chegaram ao Maranhão do século XX através da poesia de José Chagas e Bandeira Tribuzi, e que nas mãos de Viriato Gaspar explodem de uma intensa significação poética e existencial, como em Exercice’s book:

Muito difícil
edificar
este edifício
de puro ar.

Este bizarro
prédio mental,
feito do barro
do bem e do mal.

É cansativo,
pesa bastante,
sem ter motivo
viver o instante,

que a vida dá
(divertimento)
e só de má
torna cinzento,

pura neblina
que se levanta
e nos domina
com sua manta,

por ver que é duro
se construir
o vão futuro
de algum porvir

[...]

deste difícil
vício de ser
o árduo exercício
de um novo ser,

raiz comprida
de lua calma,
tirando a vida
da própria alma,

só tendo a mim
por companheiro,
mas mesmo assim
me sendo inteiro,

sim mais profundo
que qualquer não:
- à flor do mundo,
meu coração.

Poemas como esses são a prova de que a geração de Viriato, assim como ele próprio, assimilou muito bem a lição de verso que foi transmitida pelo grandioso quarteto maranhense, formado por Gullar, Nauro, Tribuzi e Chagas. O próprio Viriato confirmou, através de depoimento para a Feira do Livro de São Luís, em 2013, que a publicação de livros como Necessidade do divino e Noite ambulatória, de Nauro Machado, Os telhados, de José Chagas, e o Pele e osso, de Bandeira Tribuzi, foram fundamentais para que os poetas de seu grupo adquirissem a consciência poética que os distinguiria enquanto grandes continuadores dos recursos expressivos postos à prova por essas quatro altas vozes da poesia maranhense. Sem tais recursos, a poética desenvolvida por Viriato não teria sido vitoriosa, síntese do esforço de gerações inteiras de poetas na busca de uma expressão genuína, ao mesmo tempo moderna e clássica. Por esta razão, não é à toa que Viriato também se indague, em seu célebre poema Poemar, se há receituários que possam ser ensinados ou aprendidos na confecção do poema, se há, de fato, alguma lição que possa ser transmitida em forma de poética desde Aristóteles até os dias atuais:

O que botar no poema
e o que dele retirar?
Falar em bomba, em cinema,
ou em flor, em chuva, em luar?

Como Fernando Pessoa,
só ver mesmo o que se vê?
Mentir que a vida está boa,
se está ruim como o quê?

Denunciar, engajado,
o que qualquer cego vê?
Pregar ao operariado,
que nunca nem vai me ler?

[...]

Citar Pound, Mallarmé,
Maiakovski, o cacete,
se o povo, em vez de me ler,
vai é batalhar seu leite?

Donne, Lorca, Baudelaire,
Hölderlin, Villon, Rimbaud?
Ser um grande bricoleur
do que se leu ou escutou?

Verlaine, Guillén, Neruda,
Corbière, Rilke, Musset?
Ah! Quanta coisa maçuda
um poeta tem de ler.

Gautier, Eliot, Sand,
Laforgue, Blake, Éluard?
Antropofálgis, noi-grandes,
Processo, práxis, dadá?

Ser um poeta bem pobre
ou nadar no vil metal?
Sá-Carneiro, Régio, Nobre,
Cesário Verde, Quental?

Cecília, Drummond, Bandeira,
Jorge de Lima, Cabral?
Estrelar a vida inteira
no país do carnaval?

Ser um poeta Vinícius,
o grande, o de Morais,
e escrever, por desperdício,
belos versos imorais?

[...]

O que jogar no poema
e o que dele retirar?
Escalavrar o morfema,
numa sintaxe de ar?

E o corte epistemológico,
o sintagma estrutural?
Surrealista, gongórico,
hermético, marginal?

[...]

Que profissão desmedida
para um salário de fome.
Ser funcionário da vida
e escriturário do homem,

Cirurgião do concreto,
intérprete do universo;
deixar sangrar o alfabeto
na carne viva do verso,

passando a limpo o momento,
plantando fundo uma lavra
de fogo, de fúria e vento,
no duro chão da palavra.

O poema todo, uma verdadeira obra-prima da literatura maranhense contemporânea, aqui abreviado a fim de caber nos limites físicos de um breve ensaio, é o registro de um poeta dotado de uma elevada e grandiloquente consciência artística e literária, que ostenta uma invejável cultura poética, que tem sido cada vez mais rara entre escritores e jovens poetas que, no afã algo desenfreado de publicar um livro e tornar-se uma celebridade – síndrome que é o retrato irretocável da cultura patológica de nossos tempos, de despudorado narcisismo -, ignoram a necessidade do cultivo da língua, da leitura diária e constante, do permanente exercício e experimentação da palavra. Em suma, Viriato é outro legítimo herdeiro da tradição de um sistema literário vigoroso, cujo legado vem sendo transmitido há gerações de poetas que, esteados nos recursos expressivos desenvolvidos por artesãos da palavra de primeira grandeza, deseja nos deixar uma preciosa herança de poemas que atingem o cerne e o ser da palavra. Enfim, fiquemos com o seu O legado:

Aquele poema
que não consegui,
mas a duras penas
carreguei em mim.

Aquela pequena
coisa indefinida,
que não foi poema
nem encheu a vida.

O sol escondido
que não se acendeu.
Este não ter sido
que em mim fui eu.



Ricardo Leão
poeta e ensaísta

  

Comentários

  1. Magistrais, ambos, em sua poesia e escrita. Viriato é um poeta para se aplaudir de pé. Parabéns, Ricardo pela clareira que abres.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog