OS ACORDES DA PALAVRA EM SALGADO MARANHÃO
A poesia de Salgado Maranhão
ocupa, indubitavelmente, um lugar de absoluto destaque no concerto da poesia
maranhense contemporânea. Além disso, a própria trajetória existencial deste
poeta, oriundo do interior de Caxias, de uma comunidade remanescente de
quilombolas, é um caso extraordinário, tal como seu indiscutível talento para a
palavra, pois nem o fato de ter sido alfabetizado apenas aos 15 anos de idade o
impediu de um encontro marcado e inelutável com a literatura e, sobretudo, com
a poesia. Dir-se-ia que Salgado Maranhão, que testemunha na pele e nas origens
as profundas e graves injustiças e desigualdades da sociedade brasileira, é uma
espécie de predestinado, desses que são assinalados com uma estrela, um sol
particular, um signo cuja voz o convoca, dos apriscos mais humildes da terra e
do silêncio mais profundo de seu ser, a ser uma das vozes altissonantes da
tribo. E, com isso, levantar adiante a tarefa árdua, mas gratificante, de
realizar a missão enunciada por Mallarmé e “donner un sens plus pur aux mots de
la tribu”. [1]
E, literalmente saído da tribo de sua aldeia original, Salgado Maranhão
construiu com esforço lídimo e consciente o seu caminho ímpar e pessoal em
direção à consagração meritória e indiscutível de um genuíno artista do verso e
da palavra, hoje reconhecido como uma das vozes mais potentes de sua geração de
poetas conterrâneos, com qual não conviveu após migrar.
Salgado Maranhão, nascido José
Salgado Santos, nasceu no pequeno povoado Cana Brava das Moças, interior do
município de Caxias, cidade que, entre outros nomes, gerou para os quadros do
sistema literário maranhense poetas e escritores como Gonçalves Dias, Coelho
Neto, Déo Silva, entre muitos outros. Contudo, iniciou a sua formação e trajetória
literária na cidade de Teresina, capital do Piauí, a pouca distância de Caxias,
em função de ser um centro urbano mais desenvolvido e próspero. Daí, seguiu em
1973 para o Rio de Janeiro, tendo cursado Comunicação Social na capital
carioca, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e Letras na
Universidade Santa Úrsula, este último inconcluso. Paralelo à atividade de
poeta, compositor e letrista, trabalhou como jornalista e consultor cultural.
Os primeiros poemas serão publicados na antologia Ebulição da escrivatura (Civilização Brasileira, 1978). Na
sequência de sua carreira poética, publicou, até o momento, 11 livros: Punhos da serpente (Achiamé, 1989); Palávora (7Letras, 1995); O beijo da fera (7Letras, 1996); Mural de ventos (José Olympio, 1998); Sol sanguíneo (Imago, 2002); Solo de gaveta (Sescrio.com, 2005); A pelagem da tigra (Booklink, 2009); A cor da palavra (Imago/Fundação
Biblioteca Nacional, 2010); O mapa da
tribo (7Letras, 2013); Óperas de nãos
(7Letras, 2015); e Avessos avulsos
(7Letras, 2013).
Como se vê, trata-se de um autor
prolífico, fecundo e vitorioso, pois, ao longo dessa trajetória singular,
ganhou vários prêmios muito importantes, entre os quais se destacam o Jabuti,
em 1999, com Mural de ventos, e o
Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, em 2011, com A cor da palavra. Além disso, tem poemas
traduzidos em inglês, italiano, francês, alemão, sueco, hebraico e esperanto.
Como compositor e letrista, tem canções e parcerias com os grandes nomes da
MPB, entre os quais se destacam Alcione, Elba Ramalho, Domiguinhos, Paulinho da
viola, Ivan Lins, Zizi Possi, Ney Matogrosso, Elton Medeiros, Rita Benneditto,
Zé Renato, Selma Reis, Rosa Maria, Xangai, Vital Farias, Zé Américo Bastos,
Moacyr Luz, Amélia Rabelo, Carlos Pitta, Gereba, Mirabô Dantas, Wagner
Guimarães e Naeno.
Ou seja, a trajetória de Salgado
Maranhão, a despeito de todos os óbices que um menino de origens
afro-brasileiras poderia enfrentar, oriundo dos rincões agrestes do interior do
Maranhão, é absolutamente exitosa sob todos os aspectos. O que não quer dizer
que seja resultado apenas do reconhecimento e do mérito próprio, aliás
indiscutíveis na obra e no talento de Salgado, mas fruto de uma labuta e pugna
incessante, do trabalho sem descanso de um artista que conhece bem os obstáculos
interpostos aos migrantes nordestinos pobres e, sobretudo, aos afrobrasileiros.
Contudo, Salgado Maranhão ignorou olimpicamente toda a sorte de barreiras e
impedimentos, e projetou-se em uma carreira em que, é necessário frisá-lo e
reconhecê-lo, é resultado do esforço concentrado do talento e da persistência
e, portanto, seu reconhecimento e consagração são totalmente devidos e justos,
em um país que não é célebre por ser generoso com seus quadros de origens mais
humildes e marginalizadas. Salgado Maranhão, no entanto, sobreviveu para além
de tudo isso, e impôs a si mesmo como um modelo de êxito, jamais esquecendo
suas origens, a cor da pele, que também se transfere para a cor da palavra. É o
que podemos atestar em poemas como Negro
soul e Tributo a Bob Marley,
constantes em Punhos da serpente (1989):
sou um negro,
orgulhosamente bem-nascido
à sombra dos palmares,
da grandedemocracia
racial
ocidental
tropical.
sou bem um outdoor
de preto
com a cara pro luar
inflando a percussão
do peito
feito um anjo feliz.
sou mais que um quadro-negro
atrás de um giz: um livre livro.
e sangue de outras sagas;
e brilho de outros breus:
quanto mais me matam
mais eu sobrevivo.
(negro é feito cana no moedor,
sofre e tira mel da própria dor.)
....
das vielas da Jamaica
aos confins da Etiópia,
todos ouviram teu som:
gritarra enfurecida
osso atravessado
na goela do ocidente.
todos notaram teu vulto
arrastando as tranças,
arrastando a rasta:
um Isaías no deserto
anunciando a vinda do Messias.
os mil céus de uma canção
de amor
contra os mísseis
da moderna Babilônia,
babylouca explosão de dor.
louvado seja o teu clamor
estrela solitária,
pássaro negro do novo mundo!
de tudo que restou de nós
fica valendo o teu canto
e as milícias do amor
em todos os recantos
remendando a história:
uma chaga que dói mais que a dor.
Esses e outros poemas confirmam
que Salgado Maranhão não ignorou a relação atávica entre canto e pele, entre
cor e identidade, entre a negritude e a literatura, de modo que está registrado o testemunho
de sua consciência como autor afro-brasileiro, incrustrado que está na história
do sistema literário de uma sociedade preconceituosa, racista e injusta. Afinal
de contas, o próprio Salgado confirma em Sol
sanguíneo (2002), em poema homônimo: “Minha terra é minha pele”.
Entretanto, para muito além de
ser um dos talentos poéticos afrobrasileiros mais genuínos, profícuos e
fecundos, desde talvez Cruz e Sousa, Salgado Maranhão é, sobretudo, um poeta
maior, de primeira grandeza, com todos os sinetes e chancelas de tal condição. Notavelmente,
soube distinguir-se através de uma trajetória que, desde o primeiro livro, é
assinalada por uma constante evolução metafórica e verbal, de modo que é
possível constatar, livro por livro, saltos em direção a uma poética que
afunila uma concepção de ser e de poesia que demonstra, a cada poema, a força inquestionável
de seu talento como artesão da palavra e como poeta. É evidente que sua
carreira poética não se iniciou no Rio de Janeiro, conforme referimos linhas
atrás, e, portanto, Salgado ainda teve tempo de entrar em contato com a seiva
da tradição poética nordestina, sobretudo maranhense e piauiense, estados da
federação que compartilham um sistema literário relativamente homogêneo, juntamente
com o Pará. Dessa forma, é possível notar, desde os livros iniciais aos mais recentes
da obra de Salgado, que o autor está à procura de uma expressão poética muito
pessoal, na qual o papel da metáfora é altamente definidor e muito importante
e, para não dizer, a própria tônica da tessitura textual, embora em seus inícios
talvez a dicção esteja ainda afeita ao discurso poético em voga no período.
Refiro-me, mais especificamente, aos poetas da chamada “poesia marginal”, dos
quais Salgado bebeu o tom mais discursivo, de certas tonalidades sociais e
existenciais:
dentro da jaula do peito
meu coração é um leão faminto
que devassa a madrugada
como um felino atento
seguindo a órbita da urbe
e a têmpera do tempo.
já foi casa de marimbondos,
já foi covil de serpentes,
já foi um sol sob nuvens.
vez em quando veste a calma
de uma floresta sem pássaros,
enquanto rosna em sigilo,
afiando as garras para o próximo salto.
....
tem que haver uma mudança
na gramática,
uma mudança substancial,
que não é direito
um verbo irregular
passar a ser sujeito no plural.
dever haver um jeito
de romper os elos anormais
entre o agente da passiva
e as conjunções causais.
deve haver uma conjugação geral
de todo o pessoal interessado
na situação
da posição dos verbos na oração.
que não é direito
um verbo no passado ser sujeito.
não duvido até que possa haver
uma manifestação total
dos verbos irregulares,
visando a uma transformação gramatical
no futuro do presente tempo estado,
que não é normal
um sujeito só com tantos predicados.
No entanto, mesmo entre esses
poemas em que o compromisso com a ética dá-se no mesmo compasso com a estética,
é notável uma preocupação formal com a palavra, e, em termos mais metafóricos,
com a construção de imagens e objetos verbais insólitos, repletos de aliterações,
assonâncias, jogos rítmicos, sintáticos e lexicais, tais como neologismos e
palavras-valise. Assim, despontam oximoros elegantes, obtidos através de
construções típicas do experimentalismo moderno, como “a órbita da urbe”, “a
têmpera do tempo”, “urbanotrópole”, “grandemocracia”, “carne-morango”,
“flores-navalha”, “africalegremente”, entre outros recursos expressivos, os
quais explodem nos versos de Doidonauta:
se lavro silabaredas falavras levo na manha manhã
comum
galo sideral a zen milhas milharando estrelas
doidonauta
poetávido num harém de letras mastigoelando
palavárias.
Todos estes eventos linguísticos
sinalizam, já no livro de estreia, o que o próprio Salgado afirma em Estado de ânimo: “estou grávido de palavras”.
E, como poeta excepcionalmente fecundo, Salgado prossegue rumo a uma arte de
ostensiva ourivesaria do verso, sem esquecer a lição drummondiana – “lutar com
palavras/é a luta mais vã. / Entanto, lutamos/mal rompe a manhã” –, que nos
predica que a arte da palavra é uma labuta incansável e diária, sem tréguas, consciência
que o autor ostenta de modo explícito e que está muito patente em Laborárduo:
Meus olhos exilaram-se
na planície das palavras.
E luto com elas no breu
como um louco
que adestrasse nuvens;
- como o outro a depenar-se.
Ainda que no desconcerto
ante as coisas que pedem silêncio.
Daí em diante, livro após livro,
o talento de Salgado confirma-se em um crescendo contínuo. Em Palávora (1995), desde o título sugestivo,
que traz consigo o sinete da imagem, através de uma palavra-valise, de uma lavoura
de palavras, o autor acerca-se da metapoesia, da inquirição do fazer poético e
da palavra, na esteira de uma tradição que já encontra, na literatura
brasileira, grandes praticantes desde Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu, em João Cabral de Melo Neto, particularmente em Psicologia da composição, ou mesmo em
Carlos Drummond de Andrade, em muitos poemas de A rosa do povo e ao longo de toda sua obra. No entanto, a
metapoesia tem sido, no caso dos poetas brasileiros, uma espécie de parada
obrigatória anterior a desenvolvimentos posteriores. Ou seja, uma espécie de
agachamento preparatório para um salto, não no sentido de que é
um gênero menor em termos líricos, mas na direção da abertura de novas searas,
pois a metapoesia ou a metalírica (talvez um termo melhor), no que ela tem de rica exploração dos sentidos potenciais da
palavra e de investigação do próprio fazer poético, obriga-nos a uma atitude
reflexiva e atenta diante do poema, uma vez que as imagens adentram o território
do abstrato puro, solicitando então que o poeta, fascinado pelo artesanato
verbal, conjugue e conjure as melhores forças de seu talento. Em outros termos,
a metapoesia abre caminhos estilísticos e metafóricos, desenvolve novos
recursos expressivos, na medida em que a reflexão sobre o fenômeno poético obriga-nos
à exploração do instrumental linguístico à disposição para a criação de imagens
insólitas e, portanto, grandiloquentes. É nesse sentido que Palávora aponta para uma nova fase no
projeto lírico de Salgado Maranhão, na medida em que o poeta, ao tentar atingir
o cerne e o ser da palavra, põe em experimentação o limite de suas próprias
capacidades verbais e artísticas. Vejamos:
a palavra coexiste no dilúvio
ao açoite do sangue nas pedras.
a palavra é a pedra – e o arquétipo
que dança.
e o tempo do fogo flama
e a memória das águaslavra
em/canto e plenilúnio.
a palavra lavra o tempo
naja imaginária
submersa no invisível mar,
godiva do cais dos loucos
deusa do silêncio.
a palavra em si é o cio
virtude
a
divertir o vício
de saber saber.
....
aceito a liturgia do verbo
e sua voragem.
aceito
o
rito
e suas pedras de fogo,
oráculo do tempo
em revoada,
relíquia
da persistente memória.
o verbo acena
ao clamar dos povos
reverbera pássaros
sob
as línguas.
....
no fim da linha
o que sobra é a poesia:
construção sobre ruínas
plasmada em palavras
e silêncios.
quem saberá os limites
da beleza e do desespero?
[...]
No entanto, Palávora é um livro plural, sob muitos aspectos. A despeito de sua
vertente metapoética, Salgado Maranhão degusta nesse livro outros recursos
expressivos, que fornecerão, nos livros seguintes, a tônica imagética de seu
laboratório poético, em constante maturação e câmbio. Dir-se-ia aqui que o
poeta, consciente agora das infinitas possibilidades expressivas à sua
disposição, adquire então o definitivo entendimento de que pode explorar para
muito além dos territórios até então conhecidos da palavra poética, e
arriscar-se agora em experimentos cada vez mais ousados, que ultrapassam as
fronteiras do já perscrutado. Não à toa uma das seções do livro é batizada de
modo irônico de Dez limites, um
conjunto de 10 poemas cujos títulos são os mesmos, mas numerados, de forma
jocosa, pelo neologismo “deslimite”. Acompanhemos um pouco o fluxo das imagens
de alguns desses dez Deslimites de
Salgado:
navalha um sol de azeviche
negride
- guerreiro em dorso de pedra.
desfrute de um tempo
escultor de tragédias.
[...]
auroram prímulas de sangue
e amargaridas
ávidas
nos meninos que trepam na chuva.
[...]
uma larva de sombras
- íris de ônix –
oceana
meu
trem de transes
fundem ao sol
as origens:
chumbo cravado em ouro.
[...]
e esta ópera
na carne
e este cego
que delira flores
da cápsula da nave
novo
movem
movies
floram
ícones
na vida rasurada pelos corvos.
Estes poemas são reveladores de
um trânsito muito interessante para o próximo livro de Salgado Maranhão, O beijo da fera (1996), no qual, a meu
ver, o poeta atinge o domínio completo de sua dicção e seu repertório de recursos
expressivos e técnicas imagéticas, as quais consistem no emprego consciente e
lúcido de instrumentais desenvolvidos ao longo da história da lírica moderna,
muito bem refletida por Hugo Friedrich em Estrutura
da lírica moderna (1956), obra rara, cuja edição brasileira encontra-se
esgotada há algumas décadas. Neste livro, o crítico e teórico alemão desenvolve
uma tese sobre a poesia dissonante da modernidade, caracterizada sobretudo pelo
ilogismo e pelo uso intenso do oximoro, um gênero muito peculiar de metáfora
que consiste não em uma associação de campos semânticos semelhantes ou
contíguos, mas justamente na intersecção semântica entre campos semânticos
completamente estranhos um ao outro, de modo que a associação entre os termos
provoca uma aprazível e, por vezes, áspera, mas bela estranheza, cujo resultado
é uma poesia que, a despeito de uma aparente construção alógica, combinada ao
longo do fluxo verbal, fornece possibilidades expressivas extraordinárias. Ora,
ao longo da modernidade literária, desde Baudelaire, que afirmou alhures que “existe
uma certa glória em não ser compreendido”, desenvolve-se um projeto estético
que, passando pela mão dos modernos espanhóis, franceses e alemães, através da
movimento Dadá, do Surrealismo e da Expressionismo alemão, prima pela
elaboração de uma poesia que tenta romper completamente com a linearidade discursiva,
em todos os níveis linguísticos (gráfico-visual, fonético, morfológico,
lexical, semântico e interpretativo), a fim de se obter uma linguagem poética
insólita, repleta de imagens capazes de fascinar pela plasticidade visual
impossível de ser concebida em termos racionais e lógicos. Nesse sentido,
parece-me que, a partir de O beijo da
fera, é possível afirmar que a poesia de Salgado Maranhão abraça de vez tal
projeto estético, uma vez que, desse livro em diante, o tônus verbal de seu
fazer poético adquire a robustez das mais altas constituições líricas,
antevista, é claro, em seus livros anteriores, mas de agora em diante absoluto
senhor dela.
Um dos poetas que mais contribuiu
no século XX para apontar essa inesgotável seara de possibilidades da poesia
alógica, de oximoros e metáforas insólitos, foi, sem dúvida, Garcia Lorca. Sua
influente lírica disseminou, sobretudo no mundo de línguas castelhana e
portuguesa, o gosto por este projeto estético da modernidade lírica, embora a
fonte da modernidade espanhola esteja mais diretamente ligada à riqueza metafórica
dos poetas barrocos espanhóis, como Gôngora, um grande inventor de paradoxos
semânticos, uma usina de oximoros à disposição dos modernos espanhóis, como
Garcia Lorca, Alberti, Aleixandre, Cernuda, entre outros, que souberam buscar
no antecessor histórico a matéria prima para os procedimentos semânticos
necessários à invenção poética. Não tardou que poetas portugueses,
particularmente Eugênio de Andrade, seguissem o mesmo trajeto, e desenvolvessem
uma poesia intensamente dissonante, com intenso uso de oximoros e imagens
ilógicas. No Brasil, as gerações de 45 e de 60 foram as que mais empregaram tal
recurso. Salgado Maranhão pertence a uma geração posterior no tempo e no
espaço, sobretudo em termos culturais, mas em seus poemas, de O beijo da fera em diante, abraça de vez
um projeto lírico característico, coalhado das lições dos modernos europeus,
produzindo, a partir de então, uma poesia elegante, fluente e sedutora, de
tonalidades sensuais e fecundas, típica de um poeta atingiu a plenitude de seu
próprio talento. O poema Fênix,
título cuja simbologia remete à ressurreição através do fogo e das cinzas, da
morte para o renascimento, aponta justamente para um poeta que nasce de novo,
de suas próprias cinzas e morte, em um ato de autofecundação, “grávido de
palavras”, fértil de lirismo e pura poesia:
Tornei-me pássaro
em meus assores,
buscando um segundo andar
no tempo. Aro
revanches na tarde
e vívido voo em mim.
Tornei-me argila e aço. Nevo
lavas de amor e amargo. Fênix
a cantar para cinzas.
Sinto na veia o revérbero
- nave rítmica –
a dublar o silêncio.
Pesco a manhã
- bailarina de raios –
a despir meus remendos;
e essa adaga de sonhos
feita de sangue e exemplo
cravada no coração,
meu templo.
É simplesmente fascinante
acompanhar o florescimento de um talento espontâneo e vigoroso como o de
Salgado Maranhão. Sua poesia, que defino como viril, fértil, sumarenta, de uma
sensualidade arrepiante e magnética, abraça-nos com uma dicção envolvente e
melíflua, muito própria dos artistas da palavra mais sedutores. Sem dúvida, o
poder verbal de Salgado Maranhão é o próprio sal da condição humana, de uma
pulsão erótica que atravessa cada imagem, cada pausa, cada ritmo e verso. As
imagens fluem através do poema em tropel de cenas e metáforas que deságuam em uma
espécie de gozo vocabular, como em Os
corcéis:
Árdego e só
este sol que arrima
os corcéis
do amor.
Tão livre
que desacata
com suas patas
e seus recatos.
Tão vasta via
que avaro
se desvairia.
(Sob os pés
a estrada imersa
o tempo,
sulca o ser
em signo
e pó.)
Halo de fogo
imprevisto
deste deus
que se diz rito
e é cio.
Aura de pavor
que avisto
de escalar sua prece
quando ela apenas
transparece.
Não à toa, Salgado agora sente a
necessidade de um novo canto, de uma nova poética, salpicada de intenso
lirismo. Que o diga em O canto:
Canto as arestas do árido
onde mora minha tribo.
Canto o que reluz do pó
dentro da casca e da cor.
Canto aos tentáculos do amor
que visam içar o azul.
Canto o despudor do onírico
onde ele é múltiplo e é único.
Canto o que sou e o que queres,
canto ao gozo das mulheres.
Canto ao vivendo e seu jogo
na estalagem dos lobos.
Canto por tudo e porquanto
canto a canto e desencanto.
Absolutamente cônscio de que sua
poética atingiu novos patamares expressivos, Salgado levanta-se na altivez e
altura dos grandes poetas da língua, ao se lançar na venturosa aventura de uma
nova “delírica”, cujas novas delícias anunciam tempos de amor e de lírica,
substancial lírica. Cada vez mais, os livros de Salgado são convites para
viagens verbais, repletas de paisagens fascinantes, cuja geografia nos conduz
às escarpas do gozo e da sedução, às falésias do desejo e da vida, às praias
exuberantes do corpo e do sexo, aos esplendores do amor e do prazer, e de uma
cornucópia inesgotável de sumos e súmulas de experiência e cosmovisão com relativo
sabor de neopaganismo. Nesse sentido, o crítico Luiz Fernando Valente aponta,
em ensaio apenso em A cor da palavra
(2009), a presença do apolíneo na poesia de Salgado Maranhão. Não necessariamente
discordo da tese de Valente, no entanto diria que não é apenas do apolíneo, no
sentido de saúde, racionalidade e luminosidade, que se compõe a lírica de
Salgado, mas de um saudável equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco, à
feição da poesia de Eugênio de Andrade, pois ambos os poetas, Eugênio e
Salgado, ostentam a sensualidade e a fluidez natural dos autores que cultivam o
culto do aqui-agora, de um carpe diem
atualizado, não nos termos e na dicção neoclássica, mas de uma percepção de um novo
paganismo, de um neopaganismo sem um ethos
religioso, mas de uma atitude ontológica, uma filosofia do ser e do estar, ou melhor,
poética, diante da vida e da existência. Colher os frutos e os sumos do dia, das
searas e adagas do amor, dos seios-ubres do desejo e da libido, e, no entanto,
celebrar o simples fato de estar vivo e feliz, em meio às contradições inexoráveis
da existência, mas sem o desespero amargo dos existencialistas ou dos céticos,
como em A adaga e o amor:
Feras da mesma seara a adaga e o amor,
da mesma sanha urgente e visceral
moldam, no tempo, o ser e seu metal
irmãos em fogo: a forja e o forjador.
Diz-se que o sangue benze o sabre e o sal
do dia a dia: trevas e esplendor.
Conspiram todos sobre o mesmo pó
o pão, a dor, o dom e o bem no mal.
Mais do que a luz oculta em seus fusíveis
é o silêncio: esse acervo de azul e vis
ardis. Eterna trama de ravina
em chamas: o amor em múltiplos níveis.
E a lucidez do afeto – água da mina
- vai abrindo o caminho para a lâmina.
Percebe-se, então, a partir dessa
constatação, que a obra poética de Salgado Maranhão é atravessada de uma enorme
lucidez, mas também de uma alacridade comedida, o que confirma que os dois
conceitos nietzcheanos, elaborados para a reflexão sobre o nascimento da
tragédia no mundo ocidental, estão em pleno e salutar convívio na poesia salgadiana.
O que é salgado na poesia de Salgado, serve como tempero e têmpera para sabor e
textura suculentos aos víveres líricos do humano. Não se trata apenas de saber
de cor as cores da palavras, mas de acordá-las entre as outras palavras, torná-las um instrumento vívido da vida, fora dos corredores trevosos dos acordos espúrios
e das tenebrosas transações, traduzindo o efêmero e eternizando-o através da
matéria vocabular do humano. É o que reclama o poeta sumarento de A cor da palavra:
Poeta é o que esplende
a labareda entranhada
ao rugir
das pequenas agonias.
Assim se erguem
(em meio ao tropel dos dias)
as cidades da memória:
contêineres feitos de gestos,
palavras incendidas de milagres;
assim se alumbra o coração
em seu charco de prímulas:
este atol que atou-me
à borda do deserto e ao sangue
em que partilho
estas horas carnívoras,
tangido a barlavento
por minhas perdidas ítacas.
Ricardo Leão
poeta e ensaísta
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