A DESCOBERTA



Na superfície deste poema
descubro a matéria espúria,
as suas flores de aço e náusea,
as frementes mãos em fúria;

descubro também toda inércia
com que limo versos e pedras,
enquanto o verbo cresce do barro
de toda palavra, espanto e treva;

descubro toda a fome sórdida
da morte que nos rói, eterna,
em toda a carne que apodrece;
cadáver que anda sobre a terra;

descubro todo ódio em cântaros,
o amargo ácido de toda fruta
queimando as vísceras do nada,
rasgando o útero à força bruta;

descubro o meu canto, esta fala
que vem após a fala, a folhagem,
as plumas do absurdo, o desvario,
o véu de incêndio da linguagem;

descubro a cegueira e vejo, extático,
o corpo natimorto do silêncio;
um deus sem dentes à boca do eterno
e, através do vácuo, o nada suspenso;

descubro também toda a paisagem
além do breu de qualquer manhã:
eis-me novamente eterno e jovem,
novo Adão para a mesma maçã;

descubro a graça, bofete na cara,
o nocaute de Deus, posto em soco,
na lona de um ringue sem rounds,
caído, como cai um homem morto;

descubro o roubo, o furto da luz,
a afronta ao falso, a flor indefesa,
o sangue a jorrar das veias murchas,
uma pústula em meio à lama negra;

descubro o fogo, a chama do atroz,
o verbo que nunca esteve em Deus,
nem jamais esteve em parte alguma,
sombra ou pensamento de ateus;

descubro Deus e o Diabo, mãos dadas,
jogando dados como duas crianças,
desde o eterno rindo, às gargalhadas,
da última morte de minha esperança;

descubro enfim os céus, os infernos,
visões que Dante algum antes vira,
o sangue dos bois jorrando, eternos,
como fosse a oitava maravilha!;

descubro o tempo, todo em volutas,
sobre o chão estéril de toda palavra,
uma fêmea de formas impolutas,
vestindo a nudez de treva e água;

descubro – enfim – o nada ao fim,
após tudo – mesmo após o nada –,
de tudo quanto quis, menos a mim:
– um frustrado Orfeu – um rábula.


Ricardo Leão. Primeira Lição de Física, 2009.
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